terça-feira, 14 de junho de 2011

Economia Solidária: alcances e limites. Entrevista especial com Clara Marinho Pereira

Fonte: Instituto Humanitas

Para Clara Marinho Pereira, a Economia Solidária não é nem nunca foi “um veículo do modo de produção socialista”. Ainda que tenha características solidárias, Clara diz que esta forma de economia “é um movimento que condensa as demandas dos segmentos que pertencem aos estratos mais desestruturados do mercado de trabalho brasileiro”. É por isso que, segundo a pesquisadora, a pauta desse setor é tão diversa, uma vez que “vai da educação ao crédito, das tecnologias sociais à igualdade de gênero”. Em entrevista à IHU On-Line, concedida por e-mail, Clara avaliou o panorama atual da Economia Solidária e a construção do Projeto de Lei 865/2011 e falou sobre o lugar da Economia Solidária no atual processo do capitalismo.

Clara Marinho Pereira é graduada em Administração pela Universidade Federal da Bahia e é mestre em Desenvolvimento Econômico com concentração em Economia Social e do Trabalho pelo Instituto de Economia da Universidade de Campinas – Unicamp. Fez parte da Associação de Fomento à Economia Solidária – BanSOL. Atualmente, é assessora técnica da Rede Integrada de Segurança Alimentar e Nutricional – RedeSan do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais são as principais determinantes da possibilidade de geração de bem-estar socioeconômico das iniciativas de Economia Solidária?

Clara Marinho Pereira – A pesquisa [1] que realizei permite afirmar que há evidências de que a geração de bem-estar das iniciativas solidárias está associada a um maior número de sócios-trabalhadores; a um menor número de mulheres; à organização sob a forma jurídica cooperativa; à dedicação a atividades econômicas rurais; ao acesso a um maior montante de crédito e de realização de investimentos; a um menor número de atividades realizadas coletivamente; a uma maior participação em conselhos de políticas públicas; à integração econômica com outras iniciativas solidárias e ao desenvolvimento de ações sociais, entre outros aspectos.

Como se vê, é um conjunto de características bastante contraditórias, que ora aproxima, ora afasta a Economia Solidária do conceito proposto pela sua principal organização política, o Fórum Brasileiro de Economia Solidária – FBES, elaborada em conjunto com a Secretaria Nacional de Economia Solidária – Senaes.

IHU On-Line – Economia Solidária ainda pode ser considerada como um veículo do modelo de produção socialista?

Clara Marinho Pereira – Não considero que a Economia Solidária seja ou já tenha sido um veículo do modo de produção socialista. Aqui e ali, podem-se encontrar iniciativas solidárias capazes de gerar excedentes em quantidade e regularidade tal que impliquem rendimentos que permitam aos seus sócios terem uma existência material digna e mais: que permitam ao seu entorno social captar benefícios das suas atividades econômicas e políticas.

Mas essa condição não é generalizável no modo de produção do capital. O que o meu trabalho conduz a afirmar é que, em seu conjunto, a Economia Solidária é dependente de recursos externos e, dadas as suas características organizativas e mobilizatórias, somente o Estado – como instituição que condensa diferentes interesses, agrega e redistribui o excedente social – e frações progressistas da sociedade civil, interessadas em manter as suas características, são capazes de prover sua reprodução.

IHU On-Line – Como você analisa esse movimento que pede a criação, por parte do governo, da Secretaria Especial de Economia Solidária? Essa secretaria poderia ajudar de que forma no desenvolvimento da economia solidária no Brasil?

Clara Marinho Pereira – Há que se notar que o Projeto de Lei 865/2011 [2] pouco observou o trabalho elaborado pelo Conselho Nacional de Economia Solidária – CNES, que condensa as diversas demandas e perspectivas do movimento. De todo modo, acredito que o reforço de uma política pública de Economia Solidária pode propiciar pelo menos três ganhos.

Primeiro, o aumento e o aporte regular de recursos para o programa Economia Solidária em Desenvolvimento, o qual considero diminuto e bastante sujeito às restrições macroeconômicas.

Segundo, a ampliação do crédito e de mercados institucionais para os produtos e serviços solidários, especialmente os urbanos. Penso que as iniciativas rurais já têm um caminho bastante promissor, por conta do Programa de Aquisição de Alimentos – PAA, do Programa Nacional da Alimentação Escolar – PNAE e do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – Pronaf, entre outros programas.

Por último, o fortalecimento mesmo das iniciativas, cuja maioria carece de incentivos.

IHU On-Line – A Economia Solidária pode ser entendida como um movimento político?

Clara Marinho Pereira – Sim. A Economia Solidária é um movimento que condensa as demandas dos segmentos que pertencem aos estratos mais desestruturados do mercado de trabalho brasileiro. E é por isso que sua pauta é tão extensa e diversa: ela vai da educação ao crédito, das tecnologias sociais à igualdade de gênero. Isso é bastante positivo na cena política brasileira.

Estamos acostumados às pautas dos sindicalizados “politizados”. Mas é preciso considerar suas limitações. Por exemplo, diversas das suas demandas concentram-se em políticas de ativação do mercado de trabalho. É o caso da proposta de provisão de crédito aos setores urbanos. Pouco adianta prover as iniciativas solidárias de instrumentos bastante democráticos e aperfeiçoados em relação às experiências em curso sem casá-las com as necessidades sociais.

É preciso vincular as cooperativas têxteis com a provisão de uniforme escolar, a urbanização de favelas com cooperativas de trabalhadores da construção civil, a agricultura periurbana com os planos diretores, etc. Até que ponto isso é intransigentemente pautado pela Economia Solidária? Enfim, é uma pergunta para provocar.

IHU On-Line – O surgimento da economia solidária no Brasil tem uma forte ligação com os movimentos e o momento político vivido pelo país na década de 1980. E hoje, quando a economia solidária surge em uma comunidade? Como você avalia o panorama atual da economia solidária no Brasil?

Clara Marinho Pereira – Penso que o sucesso econômico e a origem militante de algumas iniciativas – como é o caso do Banco Palmas, da Justa Trama, de algumas oriundas dos Projetos Alternativos Comunitários etc. – são pontos de partida para a criação de diversas outras experiências. “Se deu certo lá, por que não aqui?”

Outro ponto são as políticas públicas: elas têm sido indutoras de processos de organização em comunidades. E mesmo processos patrocinados por organizações multilaterais, como o Banco Mundial, são responsáveis pela criação de organizações que se reconhecem como pertencentes à Economia Solidária. Em suma: ela é um universo de múltiplos sujeitos e objetivos, mais ou menos próximos de ideários de emancipação social construídos no ocidente desde o século XIX.

IHU On-Line – Você analisa três teses acerca da economia solidária. É diferente o entendimento que se tem sobre a economia solidária como um movimento socialista em comparação com a economia solidária como um movimento anticapitalista?

Clara Marinho Pereira – Sim. A primeira tese, que localizo em Singer [3], vislumbra as iniciativas solidárias como veículos do modo de produção socialista. A segunda tese, que encontro em Gaiger [4], não aponta que a Economia Solidária engendre um novo modo totalizante de organização social, mas concorda com Singer que elas elaboram relações sociais de produção diferentes (atípicas) e contrárias às capitalistas (anticapitalistas). Bem, eu discordo de Singer e em parte, de Gaiger.

Para mim, os aspectos democráticos das iniciativas solidárias não são suficientes para mudarem ou se oporem às relações capitalistas de produção, seja porque são produtoras de mais-valia – ainda que não sob a forma típica do assalariamento –, seja porque não deixam de alimentar a reprodução do exército de reserva. Encontro a explicação disso numa terceira tese, aquela de Rosângela Barbosa, que qualifica a Economia Solidária como forma precária de ocupação social. Concordo com diversos elementos da tese desta autora, mas por outro lado, considero que Gaiger desvenda melhor os elementos cotidianos do trabalho solidário. Enfim, lendo minha dissertação se entende melhor o que estou tentando afirmar aqui brevemente.

IHU On-Line – Qual o lugar da Economia Solidária hoje dentro de processo capitalismo? Quais seus limites frente a esse processo capitalista da economia atual?

Clara Marinho Pereira – Não há “um lugar”, mas lugares. A Economia Solidária está presente nos processos de terceirização da produção capitalista privada e estatal, nos intentos de produção comunitária, na recuperação de empresas. Seus sujeitos estão aí por conta do “excedente estrutural de mão de obra”, tomando emprestado o conceito de Furtado, e por conta da crise capitalista desencadeada nos anos 1970.

Seus limites são dados por aqueles determinantes, que mencionei no início da entrevista; e por três condicionantes mais gerais. Primeiro, o mercado, que “cria, destrói e recria” os espaços em que ela pode exercer suas atividades econômicas e seus modos de gestão. Depois, a subdesenvolvida e heterogênea estrutura econômica brasileira, que é assentada em uma grande concentração da propriedade e da renda, possui níveis díspares de produtividade e de remuneração, desemprega um imenso contingente de pessoas e discrimina jovens, mulheres, idosos, negros, rurais, etc. Por fim, a política social, que tem sido historicamente incapaz de reverter esses “estímulos” à pobreza e à desigualdade.

Mas limites econômicos não são tão apressadamente limites políticos, de modo que os trabalhadores da Economia Solidária têm espaço para lutar por vigorosos aportes públicos associados a reformas estruturais, com o propósito de conduzir seus partícipes e à sociedade em geral a um horizonte mais justo e democrático.

Notas:

[1] Na pesquisa intitulada Economia Solidária: uma investigação sobre suas iniciativas, Clara Marinho Pereira investigou os alcances e limites da Economia Solidária. A orientação da tese foi feita pelos professores da Unicamp Márcio Pochmann e José Dari Krein.

[2] O Projeto de Lei 865/2011 vem para alterar a lei n. 10.683/2003, que dispõe sobre a organização da Presidência da República e dos Ministérios, cria a Secretaria da Micro e Pequena Empresa, cria cargo de Ministro de Estado e cargos em comissão, e dá outras providências, como a transferência da responsabilidade das atribuições da Economia Solidária. Pela proposição, esta Secretaria terá status de ministério e será responsável pela formulação de políticas de cooperativismo, associativismo, microempreendedorismo e microcrédito, além de dirigir o Conselho Nacional de Economia Solidária.

[3] O economista Paul Singer nasceu na Áustria, mas vive no Brasil desde 1940. Em 1980, ajudou a fundar o Partido dos Trabalhadores. Trabalhando atualmente com o tema da economia solidária, Singer ajudou a criar a Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da USP em 1998, quando foi convidado pela CECAE a assumir o cargo de coordenador acadêmico da incubadora. A partir de junho de 2003, o professor passou a ser o titular da Secretaria Nacional de Economia Solidária – Senaes, que implementou, a partir de junho de 2003, no âmbito do Ministério do Trabalho e Emprego.

[4] Luiz Inácio Gaiger é doutor em Sociologia da Religião e dos Movimentos Sociais pela Université Catholique de Louvain e foi coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Unisinos, onde é professor atualmente.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Economia Solidária: futuro do desenvolvimento?

O QUE É ECONOMIA SOLIDÁRIA?
Muitos consumidores ainda enxergam na economia solidária apenas um meio encontrado por produtores de baixa renda ou desempregados para sobreviver. Com essa visão, a tendência é acreditar que adquirir produtos provenientes de cooperativas, associações, empresas autogestionárias e feiras de troca não passa de um pouco de caridade.

O que pouca gente sabe é que a economia solidária vai muito além da geração de renda e traz propostas de mudanças nas relações interpessoais e com o meio ambiente. Cooperação, não competição, preservação dos recursos naturais, não exploração dos trabalhadores, igualdade de poder na tomada de decisões na empresa e responsabilidade com a comunidade local onde o empreendimento está inserido são princípios que norteiam essa prática.

A economia solidária surgiu como movimento social na Inglaterra, durante o século 19, como forma de resistência - por parte da população socialmente excluída - ao crescimento desenfreado do capitalismo industrial. No Brasil, o movimento só ganhou força no final do século passado, mas tem crescido consideravelmente nos últimos anos e já faz do país uma referência internacional no assunto.
Segundo Ana Lúcia Cortegoso, membro da coordenação colegiada da INCOOP - Incubadora Regional de Cooperativas Populares da Universidade Federal de São Carlos, as formas de organização solidária possuem um papel importante para a população que tem dificuldade de acesso às condições impostas pelo mercado .

Sempre que o movimento de economia solidária se reúne, fica claro que a intenção é realizar uma transformação social, questionando a forma como a economia está organizada e propondo outra maneira de promover o desenvolvimento, com menos concentração de renda e melhor distribuição da riqueza , esclarece Daniel Tygel, secretário executivo do FBES - Fórum Brasileiro de Economia Solidária.

Ele diz que, muitas vezes, a motivação para se criar essas organizações solidárias realmente surge como uma estratégia de sobrevivência por parte dos trabalhadores. Mas, depois que se articulam, a iniciativa acaba ganhando uma dimensão organizativa mais ampla e um aspecto de movimento social.

Se esses conceitos soam como um retrocesso na maneira de a sociedade se organizar, voltando aos tempos primitivos do coletivismo ou novamente apregoando o que as bandeiras socialistas defendiam, Daniel Tygel entende a valorização desses ideais como um salto para o futuro. O fato de alguns elementos da história passada terem sido esmagados, não significa q devemos ignorá-los, mas existe uma situação conjuntural completamente diferente de épocas anteriores: vivemos a dimensão mais aguda da globalização, com concentração de informações em grandes empresas nunca antes vista. Além da autogestão, eixo fundamental das organizações solidárias, também existe uma preocupação com o futuro do planeta e a finitude dos recursos .

Portanto, se o consumidor usa seu poder de compra para priorizar bens e serviços gerados a partir da economia solidária, está contribuindo diretamente para que os modelos econômicos, políticos e sociais sejam repensados e reconstruídos. Entenda abaixo quais as particularidades desses empreendimentos, a maneira como se organizam e de que forma você já está envolvido nesse processo.

ESPECIFICIDADES DA SOLIDARIEDADE ORGANIZACIONAL
A Secretaria Nacional de Economia Solidária e o Fórum Brasileiro de Economia Solidária mapearam as organizações brasileiras que se encaixam nessa categoria. Quatro eixos estruturais determinam a classificação: cooperação, autogestão, atividade econômica e solidariedade.

É fundamental que as associações, cooperativas ou clubes de troca sejam coletivos, suprafamiliares, e que os próprios trabalhadores sejam também os donos e os gestores do empreendimento e façam essa gestão de maneira coletiva, sem que um tenha mais poder de decisão do que o outro, independentemente do cargo ocupado dentro da empresa solidária. Também é preciso que as atividades desenvolvidas sejam permanentes e não pontuais, e que a empresa de fato exista enquanto atividade econômica.

Quando o assunto é dinheiro, é importante que não haja exploração entre as pessoas e nem má distribuição da renda. Em algumas organizações, a diferença entre o maior e menor rendimento não pode ser superior a seis vezes. Em outras, seja qual for a função do trabalhador, todos ganham o mesmo tanto, para reforçar a idéia de que não há um cargo mais importante do que o outro.

Mesmo quando há funções gerenciais dentro de uma organização solidária, elas podem ser ocupadas por qualquer um dos integrantes do grupo que seja eleito para assumir a posição. E, ainda assim, todos participam igualmente de qualquer decisão relacionada ao empreendimento.

A MOEDA SOCIAL
Quando são organizadas feiras e clubes de troca, muitas vezes os membros optam por utilizar as chamadas moedas sociais (leia reportagem Toma lá da cá). Para o secretário executivo do FBES, Daniel Tygel, uma feira de troca repensa o conceito de mercado e o de moeda.

Houve uma deturpação com relação ao valor da moeda. Com o fato de que muitas vezes se ganha mais com especulação do que com produção, nossa sociedade considera que a moeda tem valor em si , observa.

Nas feiras, os integrantes se autodenominam prossumidores são produtores de bens ou serviços e, ao mesmo tempo, consumidores dessa produção e a moeda é gerida coletivamente. Pode acontecer de os membros se reunirem e decidirem que todos devem ganhar mais vinte moedas para aquecer as trocas, assim como há momentos em que o Bush decide gerar mais moeda. A diferença é que, nesse segundo caso, trata-se de uma decisão centralizada. Nas feiras, há uma percepção clara de que a moeda é apenas a memória de uma transação comercial e não uma riqueza em si , conta Daniel.

Desse modo, não há vantagens para os prossumidores em acumular moedas ou em não possuí-las. O segredo para o sucesso dos empreendimentos ali reunidos é fazer com que essa moeda circule, de modo que ela financie a produção dos bens e serviços de que as pessoas precisem, bem como seu consumo. A moeda deixa de ser um símbolo de riqueza. Acontece de uma pessoa ficar cheia de moedas e achar isso ruim. Muitas vezes ela acaba redistribuindo-as .




SUSTENTABILIDADE INTRÍNSECA
Desde seu surgimento, as organizações solidárias vêm acompanhadas por um conjunto de princípios que incluem o respeito pelo meio ambiente, a qualidade dos produtos, a preocupação com o bem estar da comunidade e a preferência pelos empreendimentos locais.

Quando o ator que trabalha em determinada atividade econômica também é o dono do empreendimento, o consumidor da produção e o morador daquele local, cria-se outra relação de cuidado com a comunidade e a organização passa a ter outros fins que não só o lucro. Nas grandes empresas, ninguém sabe onde mora o dono, o capital especulativo manda e não há nenhum compromisso com o local onde a empresa está instalada, não existe raiz , observa Daniel Tygel.

Economia solidária também não combina com consumismo, já que o objetivo dos empreendimentos deixa de ser o lucro a qualquer custo. Nas feiras de troca, por exemplo, a idéia é que os produtos tenham durabilidade para que possam ser consertados e trocados entre as pessoas. Esse tipo de organização propõe que existem outras maneiras de sermos felizes. Não somos contra o consumo de supérfluos, e sim contra o consumo como fetiche e que acaba gerando o isolamento entre as pessoas o consumo como realização em si e não como a aquisição de um produto , diz Daniel. (leia reportagem De ponta cabeça)

Luigi Verardo, assessor da ANTEAG Associação Nacional de Trabalhadores e Empresas de Autogestão e coordenador executivo do FBES, defende que o compartilhamento de informações também é um dos aspectos de sustentabilidade da economia solidária. Temos que ser solidários com o presente a coletividade que hoje está trabalhando , com o futuro, já que não podemos endividar o mundo para os que vêm depois de nós, e também com o passado, pois as tecnologias desenvolvidas e o conhecimento acumulado pela humanidade não deve ser apropriado por menos de 10% da população do mundo .

Daniel usa a dinâmica da indústria farmacêutica como exemplo para demonstrar que o acesso compartilhado às informações pode funcionar: cada laboratório cobra bilhões pela produção de remédios, pois gasta muito dinheiro com pesquisas, cujas descobertas são mantidas como segredos industriais. Se o trabalho fosse articulado em redes, a construção do conhecimento seria feita de forma semelhante aos softwares livres haveria uma drástica redução de custos e seria possível desenvolver remédios não apenas para as doenças comercialmente viáveis.

REDES FORTALECEM PEQUENOS
Apesar de pregar a cooperação e a não-competição, ironicamente, a economia solidária precisa criar seus meios para continuar existindo em meio ao contexto capitalista e competitivo em que vivemos atualmente.

Um dos artifícios é a construção de redes de cooperação e de cadeias complementares. No caso das redes, vários empreendimentos solidários que trabalham com o mesmo ramo de atividade se reúnem para ganhar em escala. Já as cadeias complementares permitem que o fluxo econômico circule entre empreendimentos solidários e não vaze para empresas capitalistas, que absorvem os rendimentos, acumulam o dinheiro e dificultam sua circulação. Assim, a cadeia que vai desde a produção de insumos e matérias-primas, passando por todas as etapas de beneficiamento até chegar ao produto final, é construída entre organizações solidárias.

Luigi Verardo chama a atenção do consumidor para as grandes empresas que se dizem parceiras de pequenos fornecedores, enquanto acabam por estabelecer com eles uma relação de exploração, cobram caro pelos produtos orgânicos e faturam alto com o discurso de preocupação com o meio ambiente.

INSTITUCIONALIZAÇÃO DO MOVIMENTO
Depois do Fórum Social Mundial, em 2001, quando mais de 1500 pessoas se reuniram em uma oficina sobre empresas autogestionárias e pensaram na possibilidade de articular os empreendimentos solidários foi criado o primeiro Grupo de Trabalho Brasileiro de Economia Solidária, que desencadeou na constituição do Fórum Brasileiro de Economia Solidária.

Hoje, o Fórum está muito inserido na agenda internacional e quer buscar outras formas de integração econômica com a América Latina e outros continentes. Fazemos parte do conselho do RIPESS - Rede Intercontinental de Promoção da Economia Social Solidária e também do Espaço Mercosul Solidário. Cada país tem o seu jeito de manifestar o interesse pela economia solidária, mas certamente é um movimento em ebulição , diz o secretário executivo do FBES. Daniel Tygel ainda explica que a América Latina e o Brasil estão mais avançados nesse setor porque além de focarem nas questões econômicas de geração de renda, também inserem a discussão política acerca de novos modelos de desenvolvimento para o país.

Desde 2003, foram realizadas quatro plenárias. As deliberações da última saíram na semana passada (veja o que foi discutido, no site do FBES) e determinam como eixo principal do movimento a necessidade de se pensar no modelo de desenvolvimento calcado nos valores da economia solidária. A missão se divide em quatro instâncias:

- formação em economia solidária;
- finanças;
- marco jurídico e reconhecimento pelas leis nacionais e
- produção, comercialização e consumo solidários.

Além do FBES, a Secretaria Nacional de Economia Solidária, criada em 2003 e o Conselho Nacional de Economia Solidária estruturado em 2006 e composto por representantes do governo, de entidades não governamentais e de empreendimentos de economia solidária têm a função de viabilizar atividades e propor ações em prol do movimento da economia solidária no país.

NÃO É PAPEL DO GOVERNO?
É bom não confundir economia solidária com terceiro setor ou como uma artimanha para que o governo se livre de suas responsabilidades. Quando é lançado um programa como o PAC Programa de Aceleração do Crescimento, que injeta bilhões de reais nas grandes empresas, o saldo líquido para a população é mínimo. O Estado deveria ver a economia solidária como um motor de desenvolvimento local, sustentável e culturalmente diverso , defende Daniel Tygel.

Com esse reconhecimento, o governo poderia priorizar as organizações solidárias para fazer as compras institucionais, gerar leis de fomento, criar linhas de crédito e custear a qualificação profissional com formação em economia solidária para que os integrantes desses grupos soubessem gerir melhor seus empreendimentos. Isso também significaria aumentar a participação popular na economia do país.

E VOCÊ COM ISSO?
Ainda que você não esteja inserido em uma empresa solidária, suas escolhas como consumidor individual podem contribuir para a sobrevivência e a expansão desses empreendimentos que se preocupam com a sustentabilidade.

Os produtos não precisam necessariamente ter um selo de economia solidária. Basta que o consumidor tenha um olhar curioso e criativo para saber a origem do que compra, se vem da economia internacional ou de uma feira de agroecológicos, uma cooperativa ou uma associação de produtores , diz Daniel Tygel.

Ana Cortegoso sintetiza: O consumidor precisa entender que quando faz suas escolhas, também escolhe quem vai ser beneficiado por seu consumo e quem vai pagar o preço por isso. Daí a importância de saber de que maneira é feita a produção e sob que condições, se a empresa respeita o trabalhador, qual a origem do produto, que tipo de matéria prima é utilizado, qual o destino dado aos resíduos gerados etc. A decisão de privilegiar o desenvolvimento local também gera um maior equilíbrio e reduz a concentração de renda .

Uma boa dica é saber quais são os empreendimentos solidários do seu município ou estado. Confira a lista das mais de 14 mil organizações consideradas solidárias, no site da Secretaria Nacional de Economia Solidária.